quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

O Biodireito e a torre de Babel: Do mito à realidade!


Paulo Augusto Farina
Fábio Vieira Costa Cardoso

“Vamos, façamos para nós uma cidade e uma torre cujo cimo atinja os céus. Tornemos assim célebre o nosso nome, para que não sejamos dispersos pela face de toda a terra. Mas o Senhor desceu para ver a cidade e torre que construíam os filhos dos homens. Eis que são um só povo, disse ele e falam uma só língua: se começam assim, nada futuramente os impedirá de executarem todos os seus empreendimentos”. (Gênesis 11, 4-6)


          A humanidade, este notável corpo celestial, atravessa um processo histórico singular e antagônico: Ao mesmo tempo em que observamos o intenso progresso da engenharia genética – da real possibilidade da clonagem, à criação, em laboratório, do “super homem” – nos deparamos com uma massa de espíritos alienados que servem de alicerce existencial as pseudodemocracias, aos regimes autoritários e a todas as mazelas dele decorrentes.


Entretanto, a ciência nos acena com amplas possibilidades de modificarmos a estrutura genética de organismos e ecossistemas por completo. A humanidade põe-se, agora, na árdua e arriscada tarefa de concluir sua, não mais mítica, “torre de Babel”. Eis a questão: Deus ou as Leis Cósmicas, como preferirem, permitirão que tal empreitada se realize?


Há milênios que a humanidade busca um ponto de equilíbrio (interno e externo) sem obter muito sucesso. Atualmente vivemos um processo de banalização cultural, política e existencial. Basta ligarmos a tv e o rádio para comprovarmos esta lamentável realidade. Diante deste preocupante panorama, não conseguimos visualizar, para tão logo, o grande ano do devir, filosoficamente tão almejado, onde a humanidade conseguirá solucionar suas próprias mazelas. Meditemos, pois, com realismo: O Socialismo, devido à natureza do espírito humano, está muito distante de nosso momento histórico, pois não é raro ouvirmos afirmações do tipo: O egoísmo, o individualismo, a cobiça, a inveja e a vaidade são inerentes ao espírito humano. Logo, o capitalismo, ainda é o sistema econômico ideal para a humanidade! É melhor permanecer cético do que se tornar cínico, afirma Günter Grass, com sabedoria, em sua célebre obra Um campo vasto. A humanidade, devido à banalização cultural generalizada, mal possui os alicerces existenciais e filosóficos para acompanhar e compreender a dimensão e as conseqüências advindas de tais avanços científicos.


Revela-se importante avaliarmos o que ocorrerá se a humanidade decidir, sob plena égide do capitalismo, onde o lucro é a palavra chave do sistema, por em prática as técnicas resultantes dos recentes avanços científicos. Seria o prelúdio do Admirável Mundo Novo[1], do Apocalipse ou de uma Nova Era? Logicamente, tal avaliação dependerá da “fé” ou do “realismo” de cada indivíduo. 


              No entanto, torna-se fácil abstrair que o humano seja tratado como mercadoria (sem descartarmos a possibilidade de já o ser)... Que mutações genéticas decorrentes da clonagem e da criação de seres humanos híbridos (destinados, por exemplo, à realização de trabalhos forçados) ameaçassem o futuro da incauta humanidade... Que a poluição genética, como um câncer, cause um irreparável desequilíbrio nos ecossistemas naturais, a ponto de ameaçar a vida na terra... Palavras radicais, pessimistas e apocalípticas, se diria. Devo rejeitar estas explicações por superficiais.


              Não seria adequado, antes de passarmos a realizar transformações irreversíveis nas combinações genéticas da natureza, que solucionássemos, primeiramente, as gritantes mazelas e incoerências na combinação “genética” do sistema, do organismo, que é a humanidade? Acredito que seria muito mais coerente e louvável de nossa parte.


              Há milênios, os Rabinos e Cabalistas ensinam que diferentes seqüências de letras produzem diferentes combinações de energia e força e que o Universo trabalha de uma formidável maneira similar. Tal afirmação pode ser comprovada através do estudo do Sêfer Yetzirá ou Livro da Formação onde se abstrai que o universo possui seu próprio alfabeto “genético”.


             Na mesma linha de raciocínio, ousamos encarar o sistema legal como uma espécie de “DNA” de nossa sociedade. É isso mesmo. Vivemos em uma espécie de “matrix[2]” na qual uma das seqüências de combinações “genéticas” mais importantes é o sistema legal vigente. Por sua vez, a combinação total destes imperativos e leis éticas, jurídicas e morais representaria o que poderíamos denominar “genoma da humanidade”.  Assim, torna-se evidente, que devemos primeiramente melhorar as combinações de nossos “genes” (as Leis) para solucionarmos as mazelas de nossa sociedade.


          Somente a partir deste ponto poderemos pensar em como realizaremos transformações nas combinações genéticas do “mundo exterior” em sua infinita complexidade, pois o processo será irreversível! Ressalta-se que aí reside a importância do Biodireito. Este novo ramo da ciência jurídica deverá fornecer as bases éticas e filosóficas para o aprimoramento do sistema legal, devendo contemplar os avanços científicos, procurando impedir a utilização destas técnicas em prejuízo da própria humanidade.


            Em dezembro de 2003, participamos da elaboração de um artigo que pretendeu enfrentar, sob a ótica do Biodireito, questões polêmicas relacionadas às possibilidades de emprego das novas técnicas de reprodução assistida e da clonagem. O texto desenvolve-se a partir da seguinte indagação: Nossos netos serão produzidos em respeito ao Código de Defesa do Consumidor[3]?


            Essa indagação pode parecer sem nexo atualmente, mas poderá ser formulada em algum período futuro da história humana.


            O recente deciframento do genoma humano permitirá aos pais escolher desde a cor dos olhos, o tipo de cabelo, o sexo da criança além de possibilitar o emprego das técnicas de eugenia e clonagem o que vem gerando polêmica entre religiosos, cientistas e jurisfilósofos.


            Logicamente essa evolução trará benefícios, pois o que se pretende é atingir um patamar no qual todas - ou quase todas - as doenças e anomalias genéticas dos recém-nascidos sejam extintas.


           Julgamos oportuno um breve exercício de futurologia: Um casal entra em uma clínica de reprodução humana assistida. Conversa com um atendente. Afirma querer um filho. Preenche formulários. Realiza exames genéticos. Após três dias lhe será fornecido o resultado, com inúmeras combinações genéticas e características físicas possíveis para a futura criança. Os futuros pais pedem um tempo para escolher como querem o bebê.  Decidem: Menino, olhos verdes e cabelos negros. O médico parabeniza a feliz e sábia escolha do casal. Finalmente, assinam um contrato com a clínica e voltam para sua residência despreocupados. Exclamariam, certamente: Oh, Admirável Mundo Novo, que possui tais tecnologias e comodidades! Como sofriam nossos Avós!


            Nesta situação hipotética somos levados a conceber a clínica de reprodução como uma prestadora de serviços de acordo com legislação em vigência. Assim a criança geneticamente projetada assemelha-se a um produto adquirido, onerosamente, através da celebração de contrato.


            Suponhamos que, transcorrido o período de gestação, o casal se dirija à clínica para receber o almejado filho e neste mesmo dia constata que a criança, apesar de ser um menino, possui os olhos castanhos. Alguns meses depois surge outro imprevisto: o cabelo é loiro e encaracolado.


Justamente neste ponto surgirá o problema ético-jurídico: O que fazer com o “produto” (o bebê) que possui fenótipo diverso do contratado?  Algumas soluções jurídicas nos virão à mente: 1) Exigir o dinheiro de volta. 2) Devolver o “produto - criança” surgindo, nesta hipótese, outra questão a ser solucionada pelo Direito: A criança ficaria sob a responsabilidade da clínica ou do Estado?


Destas especulações fáticas exemplificativas surgem diversas questões referentes à dignidade, respeito, carinho e amor devido ao ser humano, ficando claro que a mais justa, equânime e ética das soluções é aceitar a criança como ela é, amá-la e criá-la!


Trabalhando com a hipótese de descumprimento dos termos contratuais, preceitua o Código de Defesa do Consumidor em seu art. 12: “O fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador respondem, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos decorrentes de projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou acondicionamento de seus produtos, bem como por informações insuficientes sobre sua utilização e riscos”.


Ora, em análise literal, é plausível que a clínica deverá reparar os danos causados ao casal devido ao descumprimento dos termos contratuais.


Por sua vez, o leitor poderá afirmar que os pais irão amar a criança de qualquer jeito ao que nós, fatalmente, lhe perguntaríamos: Então porque recorrer a tais técnicas se não, exclusivamente, com o objetivo de prevenir doenças e melhorar a combinação genética do futuro filho?


Devemos ainda, hipoteticamente, considerar a hipótese de um laboratório produzir, em sigilo, uma série de clones humanos, sob encomenda de vários casais inférteis. Suponhamos que, posteriormente, se verifiquem defeitos genéticos insanáveis que tornem inviável a existência sadia destes clones e que tais casais os devolvam ao laboratório. Qual seria a solução para esta questão? Abandoná-los a própria sorte? Eliminá-los?


Neste instante surgem as seguintes questões: Do ponto de vista teológico o clone possui alma? Do ponto de vista jurídico o clone possuirá personalidade jurídica própria? Em caso positivo, como se dará o registro civil e como figuraria tal indivíduo no direito sucessório? Tais questões carecem de profunda análise sendo impossível exauri-las profundamente no presente artigo.  


Contudo, em primeira análise do caso, devemos ressaltar que a Constituição da República Federativa do Brasil em seu art. 5º, caput, reza: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”.


Vai além o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/90) em seu art. 7º: “A criança e o adolescente têm direito à proteção, à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência”.


Em nossa opinião é evidente que em ambos os casos – a criança geneticamente projetada e a criança clonada – gozarão do direito à vida, decorrendo deste, todos os demais direitos individuais e coletivos assegurados em nosso ordenamento jurídico.


A Constituição Federal como carta política e a legislação sob seu império elaborada, são baseadas nos imperativos principiológicos dominantes de uma sociedade em determinada época.  Havendo mudanças na maneira de pensar desta coletividade teremos, logicamente, reflexos no ordenamento jurídico. Em suma: Os costumes e comportamentos que hoje são aceitos, amanhã poderão não sê-los. Um exemplo claro do que afirmamos são as disparidades entre o Código Civil de 1916 e o de 2002 servindo, como exemplos a esta afirmação, à subserviência feminina e o tratamento diferenciado entre filhos legítimos ou não, claramente expressas no diploma revogado.


Seguindo esta lógica de pensamento, em um primeiro momento, a ciência deixa em polvorosa a sociedade, que poderá, posteriormente – devido ao esclarecimento e a atuação da mídia, por exemplo – aceitar tais avanços científicos normalmente ou sem esboçar resistência significativa.


           É fato comprovado que, geralmente, há grande alarido quando se anuncia uma nova descoberta científica. Foi assim que sucedeu quando se descobriu a energia atômica – que é, sem dúvida, uma notável e importante descoberta humana. No entanto, devido à natureza egoísta dos indivíduos, das massas, dos Estados e, conseqüentemente, da própria humanidade, hoje vivemos sob a eminente tensão de um possível “holocausto nuclear”.


           Destarte, a primeira regra a ser observada pelo cultor do Biodireito é não acreditar em  nada do que lemos, ouvimos e principalmente nos alaridos (positivos ou negativos) acerca de uma nova descoberta científica. A idéia completa do crer, o “conhecer por outro lado”, não significa, necessariamente, ceticismo. O ato do conhecimento significa certeza total. Completa convicção. No seu interior. No seu coração. Na sua alma. Quando alguém simplesmente acredita, pode ainda ser persuadido sobre determinada questão. Sobre esta assertiva que ora lançamos, basta olharmos o que, costuma-se, denominar História Universal: As crenças dos homens mudam como as estações. Assassinatos, genocídios, suicídios, discriminação e segregação - tudo em nome da crença.


Conforme resta evidenciado é incontestável que toda descoberta no campo da Biociência tende a provocar polêmicas. Há uma tendência natural nos indivíduos crentes e descrentes, em um primeiro momento, exagerar (ou calcular) mal os benefícios e os malefícios advindos de um dado avanço científico. Ao Biodireito é reservada a incumbência de conhecer os dois lados (os oriundos dos dogmas da fé e os postulados da ciência) e formar completa convicção, antes de lançar os postulados ético-filosóficos que deverão nortear um futuro processo legislativo consciente e responsável que, longe de não estagnar o desenvolvimento científico, não permita exacerbada liberdade a ponto de desestruturar os valores básicos ou acarretar prejuízos à humanidade.  Tarefa árdua, certamente, da qual já não podemos e, nem ao menos, temos o direito de nos esquivar!


DADOS DE PUBLICAÇÃO: Arte Jurídica – Biblioteca Científica de Direito Civil e Processo Civil da Universidade Estadual de Londrina. Curitiba: Juruá, v. 2, n. 1, 2005. 480p.






[1] Referência à obra literária com idêntico título de Aldous Leonard Huxley.
[2] Referência à trilogia cinematográfica dos Irmãos Wachowsky.
[3] BARROSO, Helena Aranda - orientadora. CANOLA, Bruno César; CARDOSO, Fábio Vieira; FARINA, Paulo Augusto; FERRAGINI, Bruno Adorno e MARTINS, Bruno de Almeida. Projeto de Pesquisa Bioética: Aspectos do Biodireito frente às Inovações Científicas – Universidade Estadual de Londrina. Artigo publicado no Jornal de Londrina, Ano 15 – Número 4.724 de 25 de junho de 2004.

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